segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Entre deuses e anjos.

Acima dos telhados obscuros e das janelas iluminadas dos prédios o céu noturno de nuvens amontoadas e densas trazia o silêncio que precede a tempestade.
Enquanto por entre um labirinto de ruelas estreitas e sinuosas, seguia um homem, cansado e enfraquecido, devido ao tempo que sua jornada já perdurava. Ele movia-se soturno e cauteloso como um predador espreitando a sua presa. Atento a cada vulto que passasse por onde sua visão podia enxergar. Os sombrios caminhos que aquele homem percorria às vezes eram iluminados por poucos segundos quando um clarão se fazia no céu, revelando que os monstros estavam apenas no seu medo.
A brisa fria batia em seus cabelos trazendo as primeiras gotas de chuva.
Petrus parou então para tomar fôlego, seu coração batia acelerado como rufar de tambores de guerra de povos antigos.
Durante os últimos dias ele percorrera quase todo o trajeto a pé e já estava exausto, mas não podia parar, ele fizera uma promessa e nada no mundo o deteria de cumprir sua palavra.
Volta e meia olhava rapidamente para trás, procurando aquele que o perseguia. Ele tinha certeza que alguém estava em seu encalço desde que iniciou sua caminhada.
Houvera vezes que Petrus pensou que tudo isso era apenas sua imaginação lhe pregando peças, os ruídos, os passos vazios na rua atrás dele a sensação de estar sendo observado mesmo quando protegido pela luz do dia. Mas aquela noite era diferente, não era como das outras vezes, tinha algo a mais no ar, sua intuição lhe alertava a todo o momento, e pela primeira vez em anos desde que deixou o sacerdócio Petrus pediu ajuda a sua fé.
Esgueirando-se como um fantasma ele dobrou a esquina rapidamente entrando num bar.
O lugar era aconchegante, mas pequeno e pouco iluminado. A sua direita um balcão se estendia por quase toda lateral do bar. Poucos metros a sua frente no lado oposto a entrada havia um palco, com instrumentos jogados a esmo.
Aquele lugar de origem portuguesa era muito bonito e seguia bem o estilo europeu com paredes de pedra e entrada em forma de arco. Janelas pequenas com peitorais floridos davam um ar caseiro ao estabelecimento. No interior, mesas retangulares de madeira de carvalho estavam bem posicionadas, havia colunas de pedra, como em casas antigas, o que tornava algumas partes do bar mais escuras, principalmente a parede do lado esquerdo onde as luzes das poucas velas travavam uma luta constante com as sombras criadas pelas largas pilastras. Era um lugar talvez mais romântico para casais, ele notou. E fora para estas mesas tomadas pela penumbra que Petrus acomodou-se como se quisesse esconder-se das poucas pessoas que ali estavam, mas sua presença não passou totalmente despercebida. Uma jovem garçonete caminhou até ele.
Petrus pediu uma bebida sem nem ao menos olhar o cardápio que a moça colocara a sua frente.
Ele queria apenas ficar só e pensar nos motivos que lhe trouxeram até aquela cidade e principalmente a aquele bar.
Enquanto a garçonete se afastava para atender ao seu pedido a mente de Petrus voltou a pouco mais de dois anos onde tudo começou. Ele voltou quase que como em transe para os dias em que esteve no oriente médio.
Na época ele fora visitar Marcus. Esse amigo de infância de Petrus se tornara um missionário em países pobres ou de muitos conflitos como era o caso. O Afeganistão Vem sido palco de muitos conflitos e invasões há séculos, e desde fim dos anos setenta o país vem enfrentando uma guerra civil, e tendo intervenções de outros vários países. Marcus estava lá ajudando os feridos dessa constante contenda que nunca termina.
Foi lá que Petrus começou a perder a fé no homem depois de anos servindo a Deus.
Ele nunca conseguiu apagar a visão daquela tarde que fora encontrar seu amigo após um ataque em uma praça. Era um mar de corpos espalhado pela rua, o sangue já tingia de vermelho aquela terra árida enquanto uma sinistra figura estava prostrada como uma estaca bem no meio da rua, sorrindo como se estivesse se divertindo ao olhar aquele horror.
Para Petrus aquela falta de respeito com a vida era um verdadeiro sacrilégio. Aquele homem alto de cabeça raspado e de tronco nu exibia uma estranha tatuagem. Uma serpente que começava em seu ventre e subia enrolando-se pelo tronco até seu ombro e deslizando por seu braço direito. A tatuagem o fez lembrar-se da jibóia que como uma serpente constritora enrola-se na presa para esmagá-la até a morte. O homem o olhou fixamente por alguns segundo antes de sumir pelas ruas de cabul, e fora aquele olhar frio que o aterrorizou fazendo gelar até sua alma.
Pouco depois Petrus encontrou seu amigo ferido e incapaz de andar jogado entre as vítimas. Ele desesperadamente gritava por ajuda, mas Marcus o segurou pela mão tentando acalmá-lo, fazendo parecer que aquele pesadelo logo acabaria.
Petrus não sabia o que fazer e pela primeira vez na vida ele estava realmente se sentindo incapaz. Naquele dia ele descobriu como essa era a pior sensação que um homem podia ter.
E antes da vida se esvair dos olhos de Marcus ele fez seu pedido ao sacerdote. Petrus deveria após exatos dois anos estar em uma cidade específica e num pequeno bar bebendo em sua homenagem..
Após aquele fadigo dia em cabul, Petrus deixou o sacerdócio e com ele sua fé.
Ele nunca soube por que de tão estranho pedido de Marcus, mas como era uma promessa, ele assim o fez.
Seus pensamentos voltaram quando a jovem garçonete serviu-lhe a caneca de cerveja.
Lá fora os trovões começavam a ficar mais fortes e o som da chuva era agora intenso batendo contra as pequenas janelas do bar.
Minutos passaram entre um gole e outro, até que uma figura muito chamativa entrou no bar. Era um homem alto de cabelos longos e negros trajando uma roupa muito elegante. Após os primeiros olhares das pessoas passarem o estranho sentou-se numa mesa próxima de Petrus, mas bem ao lado da janela. Ele fez seu pedido a garçonete com um sorriso muito cordial, parecia um homem educado e muito gentil. Em seguida olhou o relógio e depois a rua pela janela.
Então em seguida outro homem entrou e se juntou ao primeiro. Este era bem alto de cabelos loiros e curtos e usava uma roupa bem simples, calça jeans e camiseta. Petrus então deu um longo gole em sua cerveja e já se preparava para sair quando ouviu um dos recém chegados falar:
― Porque insiste em se encontrar comigo a cada dois anos? Sempre imaginei que vocês tinham mais o que fazer no mundo. Se fosse uma pessoa comum diria que está me usando como álibi fazendo com que nos vejam nesse bar.
Foi à coincidência da frase “dois anos” que fez Petrus sentar-se novamente. E tentando afastar os sons ao seu redor ele se concentrou no que diziam os homens na mesa próxima.
― Poderia lhe dizer que gosto de sua companhia, mas não posso mentir. Sabe por que venho apenas para saber como você está. ― respondeu o loiro.
A garçonete serviu uma caneca também de cerveja e um prato de doces para o homem de cabelos longos enquanto ele dizia:
― Ora Miguel. Como sempre. Andando por aí e vendo a degeneração do mundo.
― Não seja hipócrita. ― respondeu sério Miguel e após uma pausa olhando em volta continuou: ― O homem não mudou desde tua época
― Há, tem razão. O homem não mudou somente sua capacidade destrutiva que aumentou. Você sabia que o ser humano é o único animal que destrói o meio em que vive?
Após um longo suspiro Miguel respondeu:
― Há um contra senso em tuas palavras. O ser humano é fraco e muito suscetível a influência.
O moreno de cabelos longos que até então não dissera seu nome retrucou inclinando-se na mesa:
― Não há não Miguel. Olhe em volta. Pessoas se matando a todo lugar, pais que matam filhos, ganância, miséria e graças à tecnologia até cidades inteiras podem virar pó nessas guerras ridículas. Não digo que antigamente era diferente, mas era preciso ser muito homem e para entrar numa guerra. Hoje até uma criança pode matar apertando um gatilho. A inocência da infância não mais existe meu amigo.
― Mas eu sei que há esperança. ― insistiu Miguel― Se apenas um entre centenas for bom, então valeu à pena.
― Nobre que diz, mas a que custo? Talvez realmente você tenha razão, mas com tempo só vejo a situação piorar. Sei que no passado os meus abusaram da fé do homem, mas será que se abster completamente é o correto?
― O homem é livre meu amigo para tomar suas decisões. Não cabe nem a você nem a mim interferir. Esse é o livre arbítrio. A verdade está escrita.
Mordendo um pedaço de doce o cabeludo falou:
― Destilar palavras não é o suficiente Miguel. Eles têm que sentir, pois a verdade é interpretada de várias maneiras depende de quem lê. Por isso existem várias religiões para o mesmo deus.
― Não adianta. Sempre debatemos e nunca concordamos. Eu só queria vê-lo. Agora eu devo ir, espero que venha no nosso próximo encontro. ― disse Miguel enquanto se levantava e se dirigia a porta.
O cabeludo também se levantando disse enquanto pegava alguns doces do prato:
― Virei ao encontro sim, até deuses pagãos tem palavra.
Miguel sorrindo perguntou:
― Tem mesmo que comer esses doces toda vez que nos encontramos? O que são afinal?
― Papo de anjo.
― Às vezes odeio você.
Atônito a tudo que ouvira Petrus jogou uma nota na mesa e correu atrás dos dois estranhos, mas quando ele chegou à porta ambos tinham desaparecido, como se nunca estivessem estado naquele bar. Sua presença só era confirmada pelos copos e prato de doce na mesa, mas na rua nem uma alma viva se encontrava. Para qualquer lado que ele olhasse não havia ninguém.
Petrus parou na calçada e em sua mente repassou todo o diálogo que ouvira.
Lembrou-se de se amigo e chegou a cogitar se Marcus nos seus últimos momentos não tivera previsto a vida que Petrus teria e por isso e fez prometer que iria aquele local naquela noite. Será que Marcus já teria também visto essa cena? Uma vez que pelo que parece aqueles dois sempre se encontram ali.
De qualquer maneira, algo havia mudado em Petrus, ele ainda tinha muito o que refletir sobre sua fé e convicções, mas sentia uma força retomando seu coração.
Ele olhou para cima e agradeceu seu amigo.
Respirou fundo mais uma vez e continuou sua caminhada. A frente uma nova estrada se erguia para ele.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Metamorfose.


Sinal verde. Atravessei pra lá do sol.
Deixei pra trás mais um dia caminhando nesse calçadão com a maresia que toma todo o ar a minha volta.
Sobre minha cabeça uma metamorfose acontece enquanto o sol baixa timidamente a minhas costas levando consigo o calor de seus raios dando lugar à lua que subia imponente mais uma vez.
Ao meu redor as luzes artificiais começam a iluminar a cidade como uma miríade de estrelas no manto escuro do céu.
Lembrei-me dos antigos gregos que diziam que a deusa Nix atravessava os céus em uma carruagem conduzida por cavalos voadores e arrastando atrás de si presa em seu longo manto a noite que tomava conta dia. Peguei-me tentando imaginar a cena.
Que belo fim de tarde aquele.
Respirei fundo e continuei minha caminhada.
Passei lentamente por pessoas que de tão atordoadas em seus problemas não conseguiam ver a magnífica mudança sobre nós. Eu achava engraçado como pessoas passavam por lugares como aquele, sem ao menos notar o que há à sua volta.
É como se o ser humano se fechasse nele mesmo, e por mais que queira perceber, não consegue se desligar dos problemas do seu dia a dia e não notam o que está ao redor.
Enquanto seguia fui reparando nas pessoas. Do meu lado um casal discutia pelo atraso da mulher em se arrumar e que chegariam atrasados a algum encontro. Mais a frente um carro estacionado estava com as portas abertas e uma musica muito alta incomodava a quem passava enquanto jovens debatiam fervorosamente para onde eles iriam naquela noite. Precisavam exibir o novo som do carro.
Num ponto de ônibus um trabalhador reclamava sozinho do trabalho e do atraso do ônibus, pois ele estava perdendo o jogo na TV. “Deus, que problema” pensei.
Ninguém notara a metamorfose daquela tarde.
O mais engraçado é que somos iguais, estamos sempre mudando. Mudamos quando somos criança depois a difícil metamorfose da adolescência, mudamos quando somos adultos, casamos e quando envelhecemos voltamos a ser crianças. Mas se mal notamos nossas mudanças quem dirá a do mundo a nossa volta.
Balancei a cabeça afastando os pensamentos e voltei a andar.
Parei então um pouco mais a frente e voltei a mirar o céu. O sol terminava de se esconder atrás dos morros, e pouco tempo depois a lua já alta criava um caminho prateado nas escuras águas do mar.
Mais um ciclo daquele dia terminou. O dia deu lugar a noite. A metamorfose estava completa.